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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

I'll be back!

Após vários meses de ausência o Estado Crítico volta à actividade, já neste Natal, cheio de novidades e muito mais activo do que nunca: Criticamente cinematográfico.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Um dia que afinal, é o nosso.

Com mais de 4 mil milhões de anos de existência, a Terra apresenta-se como a mãe que, num longo sopro, concedeu o milagre da existência humana. Reunindo todas as condições para a propagação de vida gerou ao longo da sua existência tantas e tão diversas espécies, das quais o ser humano faz parte - também ele uma parte desse milagre carbónico que representa a nossa espécie. Diga-se , a única espécie que em mais de 4 mil milhões de anos ameaçou o equilíbrio do seu habitat. A única que no espaço de 50 anos - perfurando cada vez mais a crosta terrestre em busca de mais e mais poder liquefeito - pôs em causa o que parecia impensável: colocar em risco a sua própria espécie(!). As alterações climáticas não são um problema apenas da actualidade; mas são um problema para a posteridade que a cada dia se mostra cada vez mais sem um retorno possível. Mas é tarde demais para ser pessimista: muito pode ainda ser feito, caminhos numa direcção que poderá não ser totalmente errada. Afinal foi essa mesma espécie que pensou o dia 22 de Abril como o dia da Terra.


Yann-Arthus Bertrand, fotógrafo, repórter e ambientalista francês, realizou em 2009 um dos mais proeminentes documentários acerca do panorama ambiental dos nossos dias. "Home" -O Mundo é a nossa casa- merece ser visto por todos e amplamente divulgado, exultado, discutido, mas nunca (!) esquecido. Conta-nos uma história que afinal é também a de todos nós: a história dos nossos tempos, de outros tempos, da formação da "nossa" casa à sede inebriante de progresso do Homem. E se a grande qualidade do Homo Sapiens foi desde sempre reconhecer os seus limites, porque não parar para pensar agora? Um dia que merecia receber atenção todos os dias.

O filme pode ser encontrado na íntegra, ainda que sem legendas disponíveis, em : http://www.youtube.com/watch?v=jqxENMKaeCU

Ou na página oficial: www.home-2009.com/

sábado, 17 de abril de 2010

Le Fabuleux Destin D'Amélie Poulan (2001)



Lirismos absolutos - e que tem de mal?



A fórmula é simples: Paris, a cidade perfeita para um grande romance; um autêntico amor à primeira vista e um destino que pode mudar de rumo a qualquer momento. Resultado: O Fabuloso Destino de Amélie, do francês Jean-Pierre Jeunet. E é mau? Peremptória e incisivamente: Não(!).

Sejamos claros, a história é típica, o enredo repetição lírica e tudo isto seria de facto importante se aqui (como em muitos outros) o importante fosse de facto a mensagem, e não (invariavelmente) a forma desta. Amélie junta a sumptuosidade da imagem, o gosto onírico pelo devaneio e pela criatividade de quem arrisca tudo, longe de uma Nouvelle Vague mas ao mesmo tempo criacionista motivado pela pujança e pela inovação, longe de todo o território conhecido: é o estranho caso de um realizador que se encontra entre o revivalismo e o futuro. As sequências, trabalhadas como se de um álbum de família se tratasse, conjugam na sua forma o timing perfeito e o conteúdo emocional de outro plano. E nem mais: cada plano contém uma quantidade de texturas e cores tão próprias que os julgaríamos intemporais não fossem os rasgos de modernidade reclamarem a sua actualidade. Audrey Tautou, Mathieu Kassovitz ou Rufus enquandram-se perfeitamente neste carácter dualista de que Jeunet impregna a película; ao mesmo tempo que a banda sonora de Yann Tiersen articula os espaços brancos meticulosamente. Todo este agregado cria o ambiente amélista por excelência que de tão avassalador chega a relegar a jovem que apenas queria ajudar os outros para uma espécie de segundo plano.

Arrebatadora a sequência final, apresentando toda a liberdade que o realizador emprega na obra, não menos lírica e feita de poesia pura que as restantes. Pode não apresentar grandes surpresas nem explorações, mas é uma obra absolutamente livre. E nós gostamos.

domingo, 28 de março de 2010

Reduzido

Ainda na senda das curtas-metragens, Bomb do realizador australiano Alister Grierson, foi uma das mais audazes produções apresentadas no TropFest 2005. Apesar de não ter vencido foi um dos dignos finalistas, levando ao reconhecimento do seu realizador pelo próprio James Cameron, de sucessos de bilheteira como Avatar ou Titanic.



Quando pensamos que tudo nos corre mal há sempre algo que ainda pode piorar. Dá que pensar.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Code Inconnu (2000)

Uma bandeira não é um país.
Uma avenida. A coluna vertebral de uma cidade é por norma o centro nevrálgico da sua actividade, local onde todos os dias milhares de pessoas se cruzam - manobra do acaso, de um conjunto de razões que as levaram a esse momento, whatever - garantindo o ideal de uma "aldeia global" intacto. E essa é a extrapolação de que vivemos numa gigantesca Torre de Babel, é um facto, em que a mistura de culturas parece, não inevitável, mas necessária. Compreender as diferenças e encontrar a igualdade é o mote.
Também neste Récit incomplet de divers voyages, subtítulo de "Código Desconhecido", do inevitável Michael Haneke, encontrar a igualdade na diferença parece ser a constatação evidente de que o acaso não é para aqui chamado. Não, não quando as histórias dos diferentes protagonistas se assumem tão diferentes - mas no fundo tão relacionadas entre si, e isso não é obra da providência. Da mesma forma que os indivíduos que se cruzam numa avenida não se cruzam por acaso. Não. Na sua obra Haneke também não deixa nada ao acaso (por vezes não vemos todas as pontas, mas isso, c'est la vie) e neste caso é o resultado de uma série de histórias e viagens incompletas que cria a sua Torre de Babel, meticulosamente sua, repleta dessas pequenas ligações que poderiam até nem existir e que, repita-se, não são obra de uma qualquer casualidade. Tudo se inicia com um papel amachucado que é atirado para o regaço de uma pedinte, e todas as implicações que essa acção não deliberada terá são no mínimo casualidades. Porquê o antagonismo? Porque simplesmente o papel fora atirado por um jovem, que viria a ser interpelado por um outro jovem (Amadou) de origem africana, que o considerou enquanto um acto de desrespeito. Mediante a intervenção da polícia vimos a descobrir que afinal a pedinte tem um nome, Maria, e que é uma imigrante ilegal a viver em França. E como se não bastasse, Maria é repatriada, Amadou acusado de racismo e o jovem, irmão de um fotógrafo a trabalhar no Kosovo, ignorado pelo pai. É nessa parte da interpretação que a avenida entra, isto é, a coluna vertebral: Anne Laurent, uma actriz interpretada por Juliette Binoche. E como coluna vertebral que é confere todo o sentido à história, conectando os personagens e alagando de vida esta obra, não sendo nem culpada nem injuriada.


O drama da emigração, brilhantemente caracterizado em Maria, é o de tantos outros que partem à procura de algo melhor, à procura de uma vida longe de suas casas e de quem mais amam. O seu código não é desconhecido, tal como não é desconhecido o código utilizado por crianças mudas para comunicar: tudo depende da vontade de quem quer ou não compreendê-lo. Todas as questões morais e ideológicas são colocadas a frio, o que é um hábito em Haneke, não se resumindo às questões de emigração e dos emigrantes - vai ao que de mais profundo existe na alma humana, revolve passado e presente, para nos dar a história do jovem atirador de papéis amachucados. Porque, regra geral, a casa não costuma ser onde está a cabeça mas sim o coração. E esse jovem prefere a cidade ao campo, contrariando o pai. O que o leva a Paris, onde através da namorada do seu irmão percorre a cidade, amachuca um papel e... Aí se percebe a importância de Anne e da sua história mostrada em tom descuidado: ela é a base, a sua história é irrelevante e no entanto faz sentido. Obra do acaso? Não, de um dos grandes mestres do cinema actual. Que depois de construir a sua Babel lhe dá um desfecho muito seu, ao som de - sim, acto único, Haneke presenteia-nos com música na parte final da obra - uma fanfarra pouco comum que nos deixará a cogitar.

É inegavelmente uma obra maior, mais directamente alarmista e menos provocadora, sem nunca cair no melodrama americanizado. Um resumo de histórias que não são as de um país mas sim das pessoas que nele vivem, independentemente da bandeira que carregam. Multiculturalidade numa sociedade pouco aberta ao que é diferente. Acaso?

quarta-feira, 24 de março de 2010

Somewhere Over the Rainbow

É este o famoso refrão daquela que será provavelmente uma das mais fantásticas bandas sonoras de sempre. Interpretada por Judy Garland no musical de 1939, The Wizard of Oz (ou O Feiticeiro de Oz, na tradução portuguesa), personifica sobretudo a esperança e o sonho sobre um mundo ideal de amor e felicidade. A história é intemporal e conhecida de todos: uma meninda, Dorothy, é transportada por um tornado até um mundo de fantasia onde bruxas, leões cobardes, espantalhos falantes e homens de lata são apenas o princípio.
Realizado por Victor Fleming, este marco do cinema mundial, comemorou em 2009 o seu 70º aniversário com o lançamento de uma versão restaurada em DVD.

Ocupa o 10º lugar da lista da American Film Institute para os melhores filmes de sempre.



segunda-feira, 22 de março de 2010

Cinema curto.

Rápido e eficaz. Nunca o sentido da expressão teve tanto significado como na era em que o YouTube, o Twitter ou o Facebook nos conduzem a uma minimização do tempo. Rápido. E que assim nos satisfazem, informam ou nos dão a conhecer. Eficaz.

É então nessa vertente do YouTube que as curtas (metragens) começam agora a ganhar mais importância: desde logo a criação de festivais internacionais como o TropFest em Sydney (Austrália), que ganha agora forma com mais uma edição em New York (inevitavelmente). Por cá é o Festival Internacional de Curtas, sediado em Vila do Conde, quem dá o mote, indo já na sua 18ª edição.
A curta apresentada, Mankind is no Island, foi a vencedora da primeira edição deste festival em NY 2008. A mensagem sobre a forma como tratamos os sem-abrigo é passada pelo realizador Jason van Genderen de forma, embora subliminar, muito curiosa.
Também curiosamente esta curta foi produzida com um valor estimado de 40€, sendo integralmente filmada com um telemóvel nas cidades de Sydney e New York. Porque nem só de avatares vive o cinema.




Mais informação sobre estes festivais em:

http://www.tropfest.com/

http://www.curtasmetragens.pt/

sexta-feira, 19 de março de 2010

Qual o melhor?

Ordenar qualitativamente e descobrir qual o melhor. Esta parece ser uma das obsessões mais naturais inerentes ao homo sapiens nos dias de hoje, estendendo-se praticamente a todas as áreas inteligíveis. Como não podia deixar de ser, também o cinema faz parte dessa lista. O American Film Institute decidiu assim publicar no seu site os 100 melhores filmes de sempre, votados por críticos e realizadores - por muito relativo ou pessoal que isso seja. (No entanto, quando muitos dizem o mesmo...)

Será assim que o Top 10 da AFI irá surgir, neste mesmo espaço, uma obra de cada vez. Mostrando aqueles que podem ser considerados os melhores filmes de sempre, para saciar a curiosidade de muitos. E não, em primeiro lugar não está o Cristiano Ronaldo.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Quando o Oscar perde o brilho.

Embora passadas duas semanas que estão desde a grande noite da Academia, qualquer comentário acerca das famosas estatuetas douradas parece ainda bastante actual. Sejamos directos: falar dos Óscares enquanto indicador de qual o melhor filme do ano revela um tom quase sarcástico; tornaram-se mais uma acção de beneficência para com a Academia (para além de uma mostra de glamour) do que o reconhecimento do verdadeiro mérito.

Que não seja um tópico recente o facto de estes prémios, que são os mais famigerados do mundo, apenas permitirem que a distribuição dos premiados seja facilitada; que seja do conhecimento geral que apenas galvanizam a indústria de Hollywood (com a excepção do Óscar para melhor filme numa língua não-inglesa) não são motivos para fazerem de uma gigantesca manobra publicitária "a gala do cinema". Porque se a matéria prima - o cinema, claro está - é trabalhada por uma indústria cinematográfica que não pode arriscar e que aposta na simplificação dos argumentos para uma maior empatia do público, o resultado não pode ser senão mais do mesmo e em grande quantidade. E isso não é nada positivo.

A edição deste ano tornou-se tão previsível quanto contestada - praticamente todos os favoritos nas diferentes categorias lá receberam a sua estatueta, recaindo a contestação no facto de os favoritos não serem... os correctos. Mas engane-se quem julgar que este poderá ser um sinal dos tempos: foi esta mesma Academia de Artes e Ciências Cinematográficas quem nunca reconheceu Alfred Hitchcock, nem sequer Charles Chaplin, tardou a reconhecer Martin Scorcese e deixou para trás obras como Citizen Kane, apontado por muitos como o melhor filme de sempre, Taxi Driver ou Ranging Bull, filmes que ocupam lugares cimeiros em listas como a da American Film Intitute ou da revista Sight and Sound.
O Óscar perdeu então o seu brilho, dando toda a importância que merecia a festivais como o de Cannes, Veneza ou Berlim. Onde o cinema ainda sobrevive, intacto.

sábado, 13 de março de 2010

Caché (2005)

Até onde vamos para não perdermos coisas?


O início revela-se petulante. Um casal é aterrorizado por uma série de cassetes remetidas para Georges Laurent, apresentador de um programa televisivo de crítica literária e pai de família. Estas cassetes contendo imagens de si próprio e da sua família, captadas secretamente da sua rua, começam por perturbar o ambiente familiar. No entanto o desenrolar é continuamente intrigante, quando desenhos de significado obscuro começam a ser enviados juntamente com material mais pessoal permanecendo o autor desconhecido, começando o ambiente familiar por se tornar angustiante. E de seguida, quase que nos é retirada a história, permanecendo o que de mais visceral existe no ser humano: sem nunca sair da realidade em torno de uma família igual a tantas outras. Nada a Esconder contaria esta história se a história fosse de facto o elemento mais importante no enredo. No entanto somos catapultados para uma parafrenália de emoções, onde somos afogados sem qualquer pudor, relembrando-nos da condição humana adjacente a todos nós.

Porque se considerarmos a obra (geral) de Haneke encontramos desde a exploração da origem da violência à sexualidade reprimida, passando pela formação da personalidade: mas mantendo sempre um background inerente a cada personagem criada, um
plano de fundo que é a razão de todas as coisas, e em Nada a Esconder fá-lo de forma exímia e sobretudo intrigante.

Engane-se pois quem procurar os culpados pela história - acabamos a procurar o culpado mesmo quando nos é mostrado de forma explícita - existem sim culpas ocultas, e a forma como pequenas mentiras são contadas com um propósito maior. Daí a distância a que o mainstream é colocado de Haneke: enquanto a história das cassetes acaba por permanecer irresoluta, a história das personagens e de Georges (Daniel Auteuil) é bastante clara. Porque a forma como cada um lida com a culpa é diferente e se, ao optarmos por um caminho, filosoficamente seguimos esse mesmo caminho - por mais que o recusemos. E a personagem de Georges tende a seguir essa linha (desconhecida do espectador), que inexoravelmente o persegue. Uma linha marcada pela culpa de ter transformado a vida de um jovem Majid (Maurice Bénichou) num autêntico inferno, a qual é recusada através de pequenas mentiras à sua mulher Anne (Juliette Binoche). Também o realizador decide seguir um caminho com a sua história, criando o seu estilo marcadamente filme após filme, alterando de certa forma a história do próprio cinema.


É pela forma como Haneke analisa de forma fria e psicológica o dilema moral, destilando todo o mal-estar que se acerca do medo mas sobretudo pela negligência dos padrões convencionais que este é um dos seus maiores triunfos. Mesmo depois de terminada a narrativa (com um plano aberto esplendoroso) deixa o espectador a cogitar, tornando a experiência mais abrangente do que o normal. Porque a cobardia não se pode esconder através das máscaras que a intelectualidade parece oferecer, resistindo através de um instinto de sobrevivência que nos leva a fazer qualquer coisa para não perdermos aquilo que nos pertence.

quarta-feira, 10 de março de 2010

E Deus criou a mulher.


Como não podia deixar de ser celebramos o Dia Internacional da Mulher, 8 de Março 2010. Porque sem elas a vida, o cinema, o amor (enquanto meros exemplos) não fariam sentido. Recorde-se que o cinema já retratou muitas das mulheres mais importantes da História (
Cleopatra (1963), Evita (1996) ou Frida (2002) são alguns dos exemplos de referência neste capítulo), da mesma forma que muitas outras, que viriam a tornar-se verdadeiros mitos , contribuíram para o enriquecimento da 7ª arte. Para mais com Kathryn Biglow a alterar o género do Oscar de Melhor Realizador(a), tornando-se na 1ª mulher a vencer esse galardão.

(A beleza é universal. Ingrid Bergman, 1915-1982)

terça-feira, 2 de março de 2010

La Pianiste (2001)

Cinema em estado cru.


Natural. Se há adjectivo que não faz pleno sentido na análise a um filme este é um dos exemplos mais proeminentes. Para mais quando há realizadores que não pretendem ser naturais nas suas obras, bem pelo contrário - abundam as tentativas experimentalistas, os escapismos surrealistas e as fantasias deliberadas - que irradiam as fronteiras da criatividade. E outros há, que sem sair do panorama meramente realista, expandem a arte até pontos controversos, inovadores ou muito distantes de tudo o que já foi feito. Eis Michael Haneke. Ele que se evidencia precisamente por ser um contestatário do cinema, e, acima de tudo, um realizador controverso. Entenda-se que a expressão "controverso" se refere à sua obra mais sublime, longe de quaisquer malabarismos hollywodianos, que reclama para si "apenas" cinema em estado puro. "A Pianista" é um desses exemplos sublimes: sobretudo pela sua beleza violenta(!) e incomodativa até, mas ainda assim esplêndida - que nos aterroriza sem sair do círculo social, psicológica na sua extensão e que não precisa de chegar a ser física.
Natural não é então o adjectivo adequado na crítica de um filme. Para mais se o cinema se mostrar pura ficção (ainda que possa basear-se em factos verídicos), representação de uma realidade exagerada ou por vezes dilacerada. Longe da realidade que todos conhecemos. Não, o cinema não é natural.
Mas regressando à obra propriamente dita: Erika Kohut (Isabelle Huppert numa interpretação que lhe valeu o galardão de Melhor Interpretação Feminina em Cannes) é uma professora de piano que aos trinta e muitos anos vive com a mãe, autoritária e protectora. Que recorre a filmes pornográficos para sentir prazer e que, isolada, reflecte nos seus alunos a sua busca pela perfeição interior. E se este ambiente só por si surge bastante sórdido, tudo piora quando um jovem,Walter Klemmer (Benoit Magimel, também ele vencedor da Melhor Interpretação Masculina no Festival de Cannes), se apaixona pela senhora da vida obsoleta, a qual lhe revela os seus desejos mais obscuros e perversos de sadomasoquismo. À imagem de uma sociedade que por mais que se diga evoluída, mantém uma mentalidade que é posta à prova todos os dias, pela modernidade. À imagem de uma sociedade que embora modernizada permite que uma mulher seja sexualmente reprimida e se veja humilhada por isso. E por este plano, a crueza das imagens (dos encontros entre ambos) assume um confronto de estigmas e mentalidades, quase como uma revelação de que aquela não é uma realidade exagerada. De que aquela realidade, ainda que protegidos dela, é natural.

No pináculo da sua loucura Robert Schumann terá, algum tempo após o incidente que o levou a perder um dos dedos da mão, atingindo um momento de pura sapiência demente. Sob a aura da sua genialidade e encontrando o crepúsculo da loucura, concebeu intimamente qual o seu estado - infelizmente demasiado louco a partir desse momento para que o pudesse revelar, viria a perecer. Erika revela-nos também a determinada altura que Schumann e Schubert são os seus compositores favoritos, o que automaticamente não parece fazer muito sentido, servindo de uma informação acessória. No entanto, quando inicia juntamente com Walter uma perigosa viagem até aos limites da sanidade, e lhe entrega uma carta reveladora dos seus desejos mais íntimos toda esta informação volta reveladoramente a fazer sentido. E mérito de Haneke por nos mostrar sem pudor (deveria ter?) essa jornada através de uma forma muito sua, com cenas de longa duração e de um único shot, incomodando e provocando simultâneamente. O que parece retirar do actores toda a sua capacidade visceral (e que, parafraseando, nos revolve as vísceras) para um desempenho mais realista. Porque é de realidade que se trata, ainda que de crua, mas quase natural.
Baseado no livro de Elfriede Jelinek, Die Klavierspielerin, esta é uma das obras mais marcantes de Michael Haneke, pela forma singular de adaptar o argumento e lhe conferir o poder de uma verdade que o espectador não gosta de ver, de apontar um jogo claustrofóbico em que somos obrigados a compreender mais os personagens do que a conhece-los.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Control (2007)

Lights are flashing, cars are crashing.




Ian Curtis pôs termo à sua existência no ano de 1980, pouco tempo antes daquela que seria a sua primeira tournée pelos Estados Unidos da América. As frequentes crises epilépticas levaram-no indelevelmente a perder o controlo, que o próprio celebrizara numa das mais representativas músicas dos Joy Division. Control, do realizador e fotógrafo Anton Corbijn, é mais do que a biografia de um músico: trata-se da perspectiva supra-emocional de uma vida vivida num espaço de tempo exageradamente curto, levada ao expoente da loucura em nome do amor, perdida numa existência que apenas desejava ser como tantas outras. É na forma como Corbijn entende o valor da criação de cada música da banda de Manchester que o filme ganha a dimensão devida, superando as barreiras da biografia e alastrando até ao íntimo das letras de Curtis. Emanam experiência, mas sobretudo sombra, letras como She's Lost Control, Disorder ou Transmission - e que a rodagem a preto e branco acentua - criando um paralelismo bastante evidente com a vida do vocalista. Que nos arrasta vertiginosamente até ao seu trágico suicídio, desde a sua ascensão enquanto membro/vocalista de uma das bandas que revolucionou a cena Punk-Rock britânica, até à ao profundo sentido que levou à escrita da letra de Love Will Tear Us Apart. Sam Riley dá vida a Ian Curtis, dando a este biopic a autenticidade que por vezes parece falhar noutros do mesmo género.
Para os fãs da banda trata-se da efígie à sua glória e àquela que poderiam (certamente) ter alcançado: para os não fãs poderá existir alguma conexão forçada entre cenas, que no entanto o ritmo dos Joy Division tratará de fazer ecoar nas suas cabeças insistentemente - alertando para o milagre da vida. Uma vida demasiado intensa para quem aos vinte e três anos vivia na sombra do próprio presente, existindo da melhor forma que podia.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Funny Games (1997)

A importância do entretenimento.


A violência existe junto de nós todos os dias, coabita connosco, é um facto inegável. Que se encontre de alguma forma institucionalizada, que por vezes possa ser utilizada em nosso "benefício", que nos seja mostrada em demasia, que seja tolerada e se alegue que desde sempre nos é inerente, são pelo contrário, argumentos questionáveis.
E desde logo as vozes mais iradas levantarão as mais variadas questões acerca de quem permite que esta nos seja mostrada, como podem permitir que as gerações vindouras sejam constantemente expostas a violência, quem tolera semelhante situação?
Nós. E embora pareça redundante aparenta ser a resposta mais correcta. Somos nós, entenda-se aqueles que aplaudem a violência no cinema, quem permite que tal aconteça.
Porque a violência não se mostra; vai-se acumulando e enraizando.
Até que um dia dois jovens imaculadamente vestidos de branco surgem, e aquilo que parecia apenas mais um dia de férias, se torna o espelho de uma violência contida, acumulada. Porque é praticamente impossível deslindar sob a sua aparência aquilo que ocultam.
E ao contrário daquilo que esperávamos, a brutalidade que fora aplaudida em outros momentos, aqui não existe. E se existisse?
Apesar do louco e perigoso jogo das duas criaturas de branco (nas palavras do próprio realizador, Michael Haneke) que matam em tom de jogo infantil e talvez porque 'sim', a violência física propriamente dita é relegada para segundo plano, ou talvez mesmo renegada - e tudo porque é a sua ausência que nos pretende chamar a atenção. Porque se existisse para nós seria normal, mas assim sendo não o é. E porque não?É então, na perspectiva niilista de dois jovens que decidem jogar com vidas alheias (Paul e Peter, Arno Frisch e Frank Giering respectivamente) que Haneke se baseia, criando um labirinto de jogos psicológicos autenticamente fatais, para nos mostrar que afinal existem culpados.
De tal forma que por diversas vezes somos surpreendidos pelas perguntas de um dos jovens, argumentando que em prol do entretenimento continuarão a fazer sofrer o casal e o respectivo filho. Não é isso que queremos? E essa quebra de ficção atinge novos patamares - forma de interacção com o público que Haneke desconstruirá até ao limite. Porque a sua capacidade de produzir violência gratuita não é espantosa (nem necessitava de o ser), porque a sua capacidade de acção é outra: por isso premeia-nos com planos estáticos e intensos em cenas de longa duração, cuja beleza visual nos prende ao ecrã, torturando-nos no bom sentido da palavra (?). E são cenas como as que cria o realizador austríaco que nos trazem inclusive o melhor de cada actor, levando-os também ao limite, tornando mais credível a sua mensagem. São cenas com a pujança daquela em que o filho do casal é morto, que nos presenteiam com o que de melhor há no cinema e em actores como Susanne Lothar e Ulrich Muhe.


Para aqueles que esperam um filme violento, desenganem-se. Brincadeiras Perigosas, na sua versão original ou no remake do próprio director de 2007, é muito mais do que isso.
Para nos mostrar que apesar de haver rumores de violência, e todos sabem que existem, há quem não os compreenda ou sequer os finja compreender. Mas ela continua lá. Para que quando dois sujeitos decidam jogar a vida de um casal, saibamos qual a razão de ser.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

The Departed (2006)

Aquilo a que se pode chamar "um paradoxo".



Considerado por muitos um dos maiores realizadores da actualidade, quer pela sua peculiar visão do mundo que o rodeia quer pela verdadeira arte da realização, Martin Scorsese é um daqueles realizadores capazes de captar a realidade do seu ambiente na forma original. De nos fazer crer que o mundo que nos mostra não é um produto seu, mas que é o próprio Scorsese um resultado do meio onde cresceu.

I don't want to be a product of my environment. I want my environment to be a product of me. Frank Costello (Jack Nicholson) inicia um dos filmes mais marcantes de Scorsese com esta frase, em jeito de sentença póstuma, que irá juntar a tantas outras do carácter presunçoso da sua personagem. É de infiltrados que "The Departed" trata; de como alguém improvável assume um papel repleto de mentiras e traições. Colin Sullivan (Matt Damon) é talvez o expoente máximo desse mesmo papel, mesquinho e traiçoeiro, capaz de viver na mentira de forma a esconder a sua fraqueza. É também o símbolo da representação da fé de Scorsese na Igreja, o qual pretendia tornar-se sacerdote; é no entanto na personagem de Costello que reúne todo o antagonismo com o realizador - não o vimos a citar autores famosos, odeia a Igreja e não assiste ao que sucede à sua volta, cria-o. E o veterano Nicholson sabe bem como essa dicotomia deve funcionar, dando largas a todo o fetichismo que revelou noutras obras.
William Costigan (Leonardo DiCaprio) serve de contraponto à personagem de Matt Damon, e acrescenta realmente um ponto. Mostra-se como a personagem que viveu um passado terrível e no entanto mantém-se ímpio aos seus princípios, aquilo a que psicologicamente falando se chamaria de paradoxo (fala-se da influência do meio na maturação do ser humano?).
A montagem minuciosamente trabalhada confere-lhe o tom dinâmico de uma cidade como Boston, capaz de prender a atenção durante todo o filme. Reclama para si a forma como o enredo capricha e se desenvolve, através de tiques e manias scorsesianas, que no fim fazem sempre sentido.

Do seu ambiente Martin Scorsese absorveu o tom violento dos bairros nova-iorquinos; durante anos foi perdendo o tão ambicionado Óscar para outros (justa ou injustamente), e tudo aquilo que o poderia levar a fazer um filme politicamente correcto foi renegado. E ainda bem que assim foi. Porque tudo o que Scorsese devolveu ao seu ambiente foi algo muito maior. Com ou sem prémios, porque tanto a vida como a arte, por vezes são injustas.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

De battre mon coeur s'est arrêté (2005)

Porque a realidade é uma constante da vida.



Um cirúrgico corte com a utopia.
Foi esta a forma que Jacques Audiard encontrou para nos mostrar o lado mais cru do novo cinema francês: sem pudor nem rodeios, face a face com a intolerável consciência do ser, decantando da quimera da vida o seu sustento etéreo: o sonho.

O corte com a realidade não é completamente acessível - e muito menos acessório - assumindo, mais do que a essência do enredo, uma nouvelle vague no cinema de autor produzido em França. Ressuscitando o legado de Truffaut e Godard, desprende-se lentamente do rótulo lírico que lhe fora atribuído, rebuscando tanto a frieza e a amoralidade das personagens como a dureza dos planos e dos diálogos; e isto sem nunca cair no domínio do facilitismo.
Mas adiantando: "De tanto bater o meu coração parou" não é uma obra linear em termos de emoções. Thomas Seyr (um Romain Duris deveras autêntico) representa para Audiard uma espécie de paradigma emocional, contrabalançando a violência que exterioriza no trabalho com a perseverança do desejo de se tornar pianista; e é na relação com o seu próprio pai (Niels Arestrup) que estas características se denotam mais vincadas - ainda que não de forma implícita, longe do piano que aqui representa pouco mais que um adereço -. Essa verdadeira montanha russa de emoções confere-lhe então uma beleza gélida, um rigor mortis num corpo vivo, um triunfo de habilidade. E no centro desse périplo existe então o contrapunctus sob a perspectiva de que a vida pode ser também ela linear, o que em boa verdade - na verdade dos que sonham - é impossível.
Será também pela relação com o pai, e porque eminentemente desejamos que nos seja perpetuada essa relação, que admitirá o seu derradeiro acto de redenção, delimitando o espaço que existe entre o sonho e a realidade pelas suas próprias mãos. Continuará perto do sonho do piano mesmo quando o abandona, abdicando ao sol, tornando-se rei de si próprio. Mas não do seu interior.

É a perspectiva derrotista da vida que se impõe nesta obra. Pela forma como o sonho é renegado e inoculado do ser - o derradeiro corte com a utopia -, subsistindo um objecto cadavérico que vive movido a éter, a nada, a coisa alguma. Como pode um coração continuar a bater exteriorizado do seu combustível? Como pode alguém mover-se sem sonhar? A forma inteligível como se apresenta a hipótese do corte com o grande sonho é uma magnífica proeza de Audiard, tão dura quanto bela e, quem sabe, possível. Porque apesar de tudo a realidade sem o sonho permanece nua, sem capacidade de se mover.
Sem o dom de viver. A vida não é linear.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Lawrence of Arabia (1962)

De um outro tempo.


O deserto. Depositário de elementar dimensão, obstinadamente e acima de tudo, deserto.
Símbolo da derradeira negação do tempo e, de certa forma, uma metáfora do próprio destino: incerto, inflexível, imprevisível.
É essa a sua antítese.

A beleza enquanto experiência de um processo cognitivo, sensorial ou supra-sensorial da percepção de determinados elementos, assume por vezes a responsabilidade da demência humana - a impossibilidade de abarcar ou compreender algo de proporções gigantescas revela assim a face desproporcional do mundo. É então essa a contradição do deserto, impossível de compreender na totalidade, rogando pela sua contínua solidão.
T. E. Lawrence é então o expoente máximo da obsessão por tal beleza inebriante, pela experiência metafísica do Homem no mundo - tão letal quanto o próprio deserto. Da mesma forma Lawrence permanece isolado enquanto semblante da hipercomplexidade, remetido para um mundo muito próprio - por vezes a loucura depende da incompreensão de quem rodeia.

Peter O'Toole revisita a personagem histórica e encarna-a de forma quase perfeita dando-nos a conhecer a luta que travou aquele que seria conhecido como "Lawrence da Arábia" - não apenas pela independência da Arábia, mas também a sua luta interior pelo desejo anti-heróico que carregava. E é através desta luta que se depreende um ser incompreendido, extasiado e irado pelo seu amor ao deserto, numa relação de verdadeiro amor-ódio que nos é transmitida de forma exemplar pela interpretação magistral de O'Toole - mais do que profundos olhos azuis, este senhor da sétima arte faz com que acreditemos na sua (in)sanidade - "There is only the desert for you", ser-lhe-à dito como uma sentença nos momentos finais.
De toda essa profusão de sentimentos o realizador David Lean explora ainda a faceta mais obscura da alma de um homem - pelo gosto em ceifar vidas, reiterando em parte a negra sombra que atormentava Lawrence - num tom mais experimentalista e de maior complexidade psicológica.

Nothing is written. Tal como um deserto, o destino é maleável - pode e deve ser escrito.
Lean provavelmente não terá entregue o seu projecto a mãos deterministas, revelando uma capacidade inaudita para contar uma bela história sem redundâncias ou falsas ilusões - veja-se a cena da tomada de Aqaba, uma das mais impressionantes de toda a história do cinema - tacteando todo o domínio psicológico cuidadosamente. De referenciar ainda os planos magníficos, de extremo cuidado e dotados de enorme inteligência, obra de puro conhecimento.

Para nos recordar que o nosso coração pertence a algum lugar; que cada lugar nos cativa de forma diferente e que dele somos cativos, sem capacidade para argumentação - afinal o deserto deseja permanecer deserto.
A nossa casa será onde o nosso coração se encontra, tal como nos velhos filmes. E que bom é apreciar obras de um outro tempo.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

The Green Mile (1999)

E assim é todos os dias.


Do imaginário romântico à ficção não-romântica.
Frank Darabont tornou-se exponencialmente célebre nos finais dos anos 90 pelas suas brilhantes adaptações das histórias de Stephen King. O que, tendo em conta a dificuldade que apresenta a adaptação de qualquer tipo de obra literária a cinema, se revelou uma verdadeira proeza: quer pelo seu imaginário complexo, quer pela intensidade dramática de um destino nefasto que atormenta inexoravelmente as personagens. Se a isto juntarmos uma pequena dose de ficção, não tão comum no ambiente Kingiano, obtemos uma das maiores metáforas acerca do valor da vida jamais realizada. Para mais se esta for implicitamente uma metáfora ao contrário.

But, sometimes, the Green Mile seems so far. É esta a frase com que encerra a narrativa. Mas não só: é também ela que lhe dá uma parte do seu verdadeiro sentido, permanecendo em catártese tanto para Paul Edgecomb (Tom Hanks) como para nós próprios.
A realidade é-nos mostrada em primeiro plano - pela respiração ofegante (e perturbante) na execução dos condenados à morte durante os anos 30 -, para de seguida nos esbofetear emocionalmente de forma categórica com o milagre da natureza que é John Coffey (Michael Clarke Duncan). E que melhor forma de prender a atenção do que criando uma hipérbole com forma humana, este John Coffey (Like the drink, only not spelled the same. - dirá.), uma espécie de entidade capaz de curar e devolver à vida um peculiar rato de nome Mr. Jingles. O mesmo que, arauto de desgraças e expiação do Homem, canta "Heaven, I'm in Heaven" aquando da sua execução, numa das cenas mais envolventes do filme - sempre longe de quaisquer maneirismos ou falsas comoções.
Assim, é ele mesmo o ser volátil e complacente com a agonia do mundo: a quietude no centro da tempestade. Para nos ensinar que a vida não compreende as atrocidades e a intolerância semi-institucionalizadas: vale muito mais do que isso. O contraste de Percy Wetmore (Doug Hutchison) salta à vista, pela sua arrogância e malvadez, mostrando-se repetidamente o ser mais punível do Bloco E da prisão de Cold Mountain.

May God have mercy on their souls. O lamento é dirigido a Coffey momentos antes da sua execução (originalmente será na primeira pessoa do singular), mas no entanto bem mais abrangente do que isso. Aos mais atentos, este "À Espera de um Milagre" entende-se por algo muito maior que uma qualquer superprodução. E assenta-lhe fantasticamente bem esse tom de apelo melancólico, demasiado incisivo para que os não-românticos dos nossos tempos o compreendam.
Matam a quem ama.
Matam pelo amor que sentem uns pelos outros.
E assim é todos os dias.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Die Welle (2008)

Há História e História...


Como podemos parar uma onda? Simplesmente não podemos.

Vimos nos dias de hoje os erros do passado como algo de irrepetível, estático e eterno no seu tempo. Acreditamos que as incorrecções de outros nos fazem agir de forma mais consciente agora. Que cada qual no seu tempo, à sua maneira.
Mas quantas vezes em toda a História da Humanidade se repetiram erros de outrora?
Hoje como ontem tais erros são impossíveis de prever: são cíclicos e intransigentes.

A organização estrutural de qualquer sociedade tende a basear-se fundamentalmente em princípios bastante lógicos de não-estratificação social -quer seja a um nível mais extremo ou mais supérfluo. A distinção de um e outro prende-se simplesmente com dois pontos fulcrais: a necessidade de afirmação e a perda de poder. De estes dois surge com extrema facilidade um regime ditatorial, ou em termos mais político-técnicos, um estado de autocracia.
E é num estado de autocracia que, tal como numa onda, existe o êxtase e a redenção. O primeiro surge naqueles que a acompanham, obtendo um efeito de poder e revolta inquietante; o segundo naqueles que são apanhados precisamente no seu êxtase, conduzindo a um estado de calamidade e instabilidade social.
São estes os fantasmas que preenchem "A Onda", num tempo em que a informação possui a virtude de alcançar até os mais incautos.
Ambientado num clima repleto dessa mesma informação, tende a consciencializar uma Alemanha que ainda sente todo o peso de um passado negro sobre os seus ombros, procurando a redenção a uma culpa que não lhe pertence. E é nessa actualidade que espelha um paradigma que parecia impossível -a repetição de um regime totalitário num país informado. Da mesma forma que as jovens personagens repetem em inconsciência os erros de uma outra Alemanha Nazi, num projecto semanal da disciplina de Reine Wenger -um professor pouco ortodoxo interpretado por Jurgen Vogel.
O realizador Dennis Gansel toma como ponto de partida a novela de Todd Strasser e vai à procura das fragilidades de uma sociedade, de feridas que teimam em não sarar, de medos colectivos que dificilmente se ultrapassam e trá-los à superfície.
A narrativa constrói-se entre belos momentos de cinema -a fotografia de tom propositadamente descuidado assume por várias vezes uma perspectiva estável e cuidada, denotando-se o carácter reflexivo que povoa a obra. E é uma surpresa constante assistir ao desenrolar da onda, ao que ela abarca e aquilo que move, num retrato mais actual que a própria actualidade. Mais, é por desaguar num final completamente imprevisível que esta é uma obra que merece ser compreendida no seu todo.

Como podemos então parar uma onda? Não podemos.

De facto a alusão não se prende com fenómenos naturais, mas antes a fenómenos sociais. E estes sim de dimensões tsunâmicas. Porque a História se repete, e da mesma forma que acontece assim se posterga. Tal como uma onda.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Schindler's List (1993)

E o passado aqui tão perto.


Da ficção - pelo que a própria etimologia indica- sempre se esperou uma imagem figurativa da realidade. Um processo que se revela bastante necessário se tivermos em conta a indigência do homem hipercomplexo, complemento de realidade e imaginação. É pois a desconstrução desta imagem o que nos impele, consequentemente, ao confronto entre realidade e ficção: o ponto em que uma e outra se confundem. E quase que é uma obrigatoriedade do cinema mostrar a versão da realidade que não é a que todos conhecemos -no entanto a excepção assume-se inevitável quando nos confrontamos com a Lista de Schindler. Desde o início sentimos que toda a aura de tons brancos e negros nos transporta ao tempo da História, e que melhor forma haveria para mostrar a tristeza e o sadismo doentio do Holocausto.
Sentimos que toda essa aura se abate sobre nós, implacável como Homem algum deveria jamais ter testemunhado: ainda que de forma ficcionada remete-nos em cada cena para a indelével realidade, uma e outra vez. Confundido-se. Arrastando-nos cada vez mais para o fundo do vórtice de insanidade e desumanidade da campanha Nazi. Arrepiando-nos quando se fazem ouvir vozes estridentes de crianças alemãs, repetindo: "Goodbye Juden!".
Abrindo-nos as portas do mais profundo abismo da loucura.
O Homem como uma quimera, um monstro, um caos, sujeito de contradições, um prodígio, juiz de todas as coisas, verme imbecil, depositário da verdade, cloaca de incerteza e erro, glória e nojo do universo: é esse o Homem que, em qualquer condição, detém o poder de escolha sobre si próprio -nunca sobre o outro. E é a quebra dessa barreira que nos revolta -relembrar que afinal existiram mesmo todos aqueles que, sujeitos à vontade de outros, passaram pelo último degrau do inferno. Aqueles que no final surgem -rompendo o murro no nosso estômago- da mesma forma que rompem a linha entre a realidade e a ficção. E qual ode à vida surge amiúde Oskar Schindler. Figura enigmática que possibilita que cerca de um milhar de judeus escapasse a uma morte certa. Porque afinal o poder reside em ter todos os motivos para matar alguém e no entanto não o fazer. Isso é poder. Isso é vida.

De muito em muito tempo surge um filme assim, daqueles que ao invés de outros, não diminui o conceito de cinema: pelo contrário, expande-o, toca conceitos que pareciam impenetráveis. Ao final a duração parece-nos infimamente curta para mostrar uma das fases mais dantescas do Homem. Torna-se assim impossível caracterizar uma obra de arte destas dimensões, ou sequer, referir planos, representações e géneros: é por si só o género. Uma visão de um inferno na Terra pelo olhar de Steven Spielberg, para que a memória perdure e a História não se repita. Porque o passado está aqui tão perto.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Il Postino (1994)

A tutti le cose belle.




Tudo no mundo é uma metáfora de algo.
Assim questiona Mario Ruopollo a determinada altura. Mas não será também assim o amor? A metáfora de um sentimento, a descrição de um lugar-comum impossível de descrever, a forma verbal daquilo que não é corpóreo -tal como as palavras. São elas que nos movem, que nos cativam, que exprimem o mundo da forma como o sentimos -melhor ou pior e quando necessário-.
Sejam elas uma entidade hipotética, não palpável, que nos conduz ao domínio dos sentimentos: sejam elas a exteriorização dos afectos.
E são também as palavras que modulam este clássico.

Bem ao estilo do mais puro cinema italiano, Michael Radford mostra-nos em "O Carteiro de Pablo Neruda" uma fabulosa metáfora de amor, que mais do que isso, se revela um apelo transcendente de vida. De uma forma como apenas o cinema italiano possui a capacidade de fazer, vem tocar nos mais profundos sentimentos de forma simples mas sumptuosa: apegado às gentes, aos ritos e tradições locais mas no entanto tão sublime e profundo como se nada mais existisse.
Philippe Noiret imerge num Pablo Neruda à procura de refúgio na Sicília, deslocado da sua sociedade e da sua pátria. Mario Ruopollo (Massimo Troisi), uma personagem modesta mas de enorme profundidade e credibilidade, é um carteiro cujo dever é entregar a correspondência de Pablo Neruda: e poderia ser a relação entre ambos a totalidade da história. Ainda mais quando se torna verdadeiramente delicioso assistir à representação de um dos expoentes máximos da literacia confrontada com o mais puro exemplo de simplicidade aguerrida.
Seria no entanto redutor à beleza literal do enredo -o romance confere-lhe então essa dose de cabimento narrativo necessária de forma bastante simples: Mario encontra-se apaixonado pela mais bela mulher da pequena aldeia piscatória.
De tal forma que Massimo Troisi nos faz acreditar tanto na parca capacidade de utilização das palavras quanto no seu amor por Beatricce. E é nesse ponto que esta produção se torna num clássico na verdadeira acepção da palavra: não pela antiguidade, pela capacidade de marcar o seu género cinematográfico.
O argumento, a banda sonora, toda a mis-en-scène e as actuações avassaladoras remetem-nos ao ambiente leviano de uma Itália sonhadora, deixam-nos a viajar espontâneamente. Livres de toda a politiquice em que o mundo se embrenha.

Nua a realidade seria desprovida de emoções -simples, na sua aliteração do mar. Terrestre, mínima, transparente. Não a realidade dos que sonham, nem sequer dos que amam. Nua a realidade não seria a hipótese das palavras, não seria o esplendor da vida, não seria a própria vida -dedicada a todas as coisas belas.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Gladiator (2000)

O paraíso está onde menos se espera.



A morte sorri-nos a todos. Apenas lhe podemos retribuir o sorriso.
É neste âmago de consternação e realismo, que se apresenta Gladiador. Trágico, mantendo sempre uma expectativa de espectacularidade - a julgar pela cena de batalha no início -, mas ao mesmo tempo lírico e metafórico, tornando-se uma combinação perfeita daquilo que mais marcou o Império Romano: a beleza artística e o elevado nível de desenvolvimento do período clássico num contexto de violência e brutalidade.

Mas isto resume-se à História. Existe depois a história, o enredo, a narrativa. E neste aspecto nunca nos é facilitada a tarefa de abnegação e conformismo comum, tanto pela forma catalítica que vão sucedendo todas as contrariedades, como pela própria negação do destino pelo personagem principal. Esta é pois uma luta incessante do General Maximus (Russel Crowe) pelo desejo de paz, ao mesmo tempo que uma silenciosa vingança contra quem lhe estuprou mulher e filho. Essa privação do seu próprio destino impele-o numa longa viagem cujo objectivo surge no plano metafórico da narrativa enquanto Céu na Terra. O enredo assume-se assim categoricamente sombrio, como que vivendo na penumbra dos bosques da Germânia e posteriormente do Coliseu de Roma, enquanto gladiador. Assombrosa se revela a personagem de Commodus (Joaquin Phoenix), assassinando o próprio pai, desejando a própria irmã, ordenando o assassínio do General Maximus: é Commodus o responsável por tudo o que não se encontra entregue ao acaso. Mostrando contornos de insanidade e de uma soberba repulsivas confere uma enorme profundidade ao seu personagem arrebatando um desempenho inesquecível, talvez até mais conseguido do que o de Crowe.

Repleta de momentos épicos, é uma obra que tal como o seu personagem principal não se perde em glórias. Os planos muito trabalhados, de uma cinematografia de excelência, conferem-lhe um tom "clássico", ao mesmo tempo que as cenas de acção -não gratuita e demonstrando uma grande originalidade- catapultam-nos para o próprio Coliseu, dando a esta obra a dicotomia necessária para se mostrar uma obra actual, isto porque hoje como no tempo da narrativa a sociedade vê as lutas entre seres humanos como entretenimento, justa ou injustamente. Toda esta atmosfera de envolvência ímpar é acompanhada por uma banda sonora expressiva e marcada que por si só nos transporta ao tempo da acção.

Sombras e pó: assim se pode resumir o final da enorme viajem da vida; tal como a história de um Império; ou o objectivo de um ser humano, num simples gesto de graça, humildade e consternação -porque afinal o paraíso pode estar onde menos se espera.