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sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

The Green Mile (1999)

E assim é todos os dias.


Do imaginário romântico à ficção não-romântica.
Frank Darabont tornou-se exponencialmente célebre nos finais dos anos 90 pelas suas brilhantes adaptações das histórias de Stephen King. O que, tendo em conta a dificuldade que apresenta a adaptação de qualquer tipo de obra literária a cinema, se revelou uma verdadeira proeza: quer pelo seu imaginário complexo, quer pela intensidade dramática de um destino nefasto que atormenta inexoravelmente as personagens. Se a isto juntarmos uma pequena dose de ficção, não tão comum no ambiente Kingiano, obtemos uma das maiores metáforas acerca do valor da vida jamais realizada. Para mais se esta for implicitamente uma metáfora ao contrário.

But, sometimes, the Green Mile seems so far. É esta a frase com que encerra a narrativa. Mas não só: é também ela que lhe dá uma parte do seu verdadeiro sentido, permanecendo em catártese tanto para Paul Edgecomb (Tom Hanks) como para nós próprios.
A realidade é-nos mostrada em primeiro plano - pela respiração ofegante (e perturbante) na execução dos condenados à morte durante os anos 30 -, para de seguida nos esbofetear emocionalmente de forma categórica com o milagre da natureza que é John Coffey (Michael Clarke Duncan). E que melhor forma de prender a atenção do que criando uma hipérbole com forma humana, este John Coffey (Like the drink, only not spelled the same. - dirá.), uma espécie de entidade capaz de curar e devolver à vida um peculiar rato de nome Mr. Jingles. O mesmo que, arauto de desgraças e expiação do Homem, canta "Heaven, I'm in Heaven" aquando da sua execução, numa das cenas mais envolventes do filme - sempre longe de quaisquer maneirismos ou falsas comoções.
Assim, é ele mesmo o ser volátil e complacente com a agonia do mundo: a quietude no centro da tempestade. Para nos ensinar que a vida não compreende as atrocidades e a intolerância semi-institucionalizadas: vale muito mais do que isso. O contraste de Percy Wetmore (Doug Hutchison) salta à vista, pela sua arrogância e malvadez, mostrando-se repetidamente o ser mais punível do Bloco E da prisão de Cold Mountain.

May God have mercy on their souls. O lamento é dirigido a Coffey momentos antes da sua execução (originalmente será na primeira pessoa do singular), mas no entanto bem mais abrangente do que isso. Aos mais atentos, este "À Espera de um Milagre" entende-se por algo muito maior que uma qualquer superprodução. E assenta-lhe fantasticamente bem esse tom de apelo melancólico, demasiado incisivo para que os não-românticos dos nossos tempos o compreendam.
Matam a quem ama.
Matam pelo amor que sentem uns pelos outros.
E assim é todos os dias.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Die Welle (2008)

Há História e História...


Como podemos parar uma onda? Simplesmente não podemos.

Vimos nos dias de hoje os erros do passado como algo de irrepetível, estático e eterno no seu tempo. Acreditamos que as incorrecções de outros nos fazem agir de forma mais consciente agora. Que cada qual no seu tempo, à sua maneira.
Mas quantas vezes em toda a História da Humanidade se repetiram erros de outrora?
Hoje como ontem tais erros são impossíveis de prever: são cíclicos e intransigentes.

A organização estrutural de qualquer sociedade tende a basear-se fundamentalmente em princípios bastante lógicos de não-estratificação social -quer seja a um nível mais extremo ou mais supérfluo. A distinção de um e outro prende-se simplesmente com dois pontos fulcrais: a necessidade de afirmação e a perda de poder. De estes dois surge com extrema facilidade um regime ditatorial, ou em termos mais político-técnicos, um estado de autocracia.
E é num estado de autocracia que, tal como numa onda, existe o êxtase e a redenção. O primeiro surge naqueles que a acompanham, obtendo um efeito de poder e revolta inquietante; o segundo naqueles que são apanhados precisamente no seu êxtase, conduzindo a um estado de calamidade e instabilidade social.
São estes os fantasmas que preenchem "A Onda", num tempo em que a informação possui a virtude de alcançar até os mais incautos.
Ambientado num clima repleto dessa mesma informação, tende a consciencializar uma Alemanha que ainda sente todo o peso de um passado negro sobre os seus ombros, procurando a redenção a uma culpa que não lhe pertence. E é nessa actualidade que espelha um paradigma que parecia impossível -a repetição de um regime totalitário num país informado. Da mesma forma que as jovens personagens repetem em inconsciência os erros de uma outra Alemanha Nazi, num projecto semanal da disciplina de Reine Wenger -um professor pouco ortodoxo interpretado por Jurgen Vogel.
O realizador Dennis Gansel toma como ponto de partida a novela de Todd Strasser e vai à procura das fragilidades de uma sociedade, de feridas que teimam em não sarar, de medos colectivos que dificilmente se ultrapassam e trá-los à superfície.
A narrativa constrói-se entre belos momentos de cinema -a fotografia de tom propositadamente descuidado assume por várias vezes uma perspectiva estável e cuidada, denotando-se o carácter reflexivo que povoa a obra. E é uma surpresa constante assistir ao desenrolar da onda, ao que ela abarca e aquilo que move, num retrato mais actual que a própria actualidade. Mais, é por desaguar num final completamente imprevisível que esta é uma obra que merece ser compreendida no seu todo.

Como podemos então parar uma onda? Não podemos.

De facto a alusão não se prende com fenómenos naturais, mas antes a fenómenos sociais. E estes sim de dimensões tsunâmicas. Porque a História se repete, e da mesma forma que acontece assim se posterga. Tal como uma onda.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Schindler's List (1993)

E o passado aqui tão perto.


Da ficção - pelo que a própria etimologia indica- sempre se esperou uma imagem figurativa da realidade. Um processo que se revela bastante necessário se tivermos em conta a indigência do homem hipercomplexo, complemento de realidade e imaginação. É pois a desconstrução desta imagem o que nos impele, consequentemente, ao confronto entre realidade e ficção: o ponto em que uma e outra se confundem. E quase que é uma obrigatoriedade do cinema mostrar a versão da realidade que não é a que todos conhecemos -no entanto a excepção assume-se inevitável quando nos confrontamos com a Lista de Schindler. Desde o início sentimos que toda a aura de tons brancos e negros nos transporta ao tempo da História, e que melhor forma haveria para mostrar a tristeza e o sadismo doentio do Holocausto.
Sentimos que toda essa aura se abate sobre nós, implacável como Homem algum deveria jamais ter testemunhado: ainda que de forma ficcionada remete-nos em cada cena para a indelével realidade, uma e outra vez. Confundido-se. Arrastando-nos cada vez mais para o fundo do vórtice de insanidade e desumanidade da campanha Nazi. Arrepiando-nos quando se fazem ouvir vozes estridentes de crianças alemãs, repetindo: "Goodbye Juden!".
Abrindo-nos as portas do mais profundo abismo da loucura.
O Homem como uma quimera, um monstro, um caos, sujeito de contradições, um prodígio, juiz de todas as coisas, verme imbecil, depositário da verdade, cloaca de incerteza e erro, glória e nojo do universo: é esse o Homem que, em qualquer condição, detém o poder de escolha sobre si próprio -nunca sobre o outro. E é a quebra dessa barreira que nos revolta -relembrar que afinal existiram mesmo todos aqueles que, sujeitos à vontade de outros, passaram pelo último degrau do inferno. Aqueles que no final surgem -rompendo o murro no nosso estômago- da mesma forma que rompem a linha entre a realidade e a ficção. E qual ode à vida surge amiúde Oskar Schindler. Figura enigmática que possibilita que cerca de um milhar de judeus escapasse a uma morte certa. Porque afinal o poder reside em ter todos os motivos para matar alguém e no entanto não o fazer. Isso é poder. Isso é vida.

De muito em muito tempo surge um filme assim, daqueles que ao invés de outros, não diminui o conceito de cinema: pelo contrário, expande-o, toca conceitos que pareciam impenetráveis. Ao final a duração parece-nos infimamente curta para mostrar uma das fases mais dantescas do Homem. Torna-se assim impossível caracterizar uma obra de arte destas dimensões, ou sequer, referir planos, representações e géneros: é por si só o género. Uma visão de um inferno na Terra pelo olhar de Steven Spielberg, para que a memória perdure e a História não se repita. Porque o passado está aqui tão perto.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Il Postino (1994)

A tutti le cose belle.




Tudo no mundo é uma metáfora de algo.
Assim questiona Mario Ruopollo a determinada altura. Mas não será também assim o amor? A metáfora de um sentimento, a descrição de um lugar-comum impossível de descrever, a forma verbal daquilo que não é corpóreo -tal como as palavras. São elas que nos movem, que nos cativam, que exprimem o mundo da forma como o sentimos -melhor ou pior e quando necessário-.
Sejam elas uma entidade hipotética, não palpável, que nos conduz ao domínio dos sentimentos: sejam elas a exteriorização dos afectos.
E são também as palavras que modulam este clássico.

Bem ao estilo do mais puro cinema italiano, Michael Radford mostra-nos em "O Carteiro de Pablo Neruda" uma fabulosa metáfora de amor, que mais do que isso, se revela um apelo transcendente de vida. De uma forma como apenas o cinema italiano possui a capacidade de fazer, vem tocar nos mais profundos sentimentos de forma simples mas sumptuosa: apegado às gentes, aos ritos e tradições locais mas no entanto tão sublime e profundo como se nada mais existisse.
Philippe Noiret imerge num Pablo Neruda à procura de refúgio na Sicília, deslocado da sua sociedade e da sua pátria. Mario Ruopollo (Massimo Troisi), uma personagem modesta mas de enorme profundidade e credibilidade, é um carteiro cujo dever é entregar a correspondência de Pablo Neruda: e poderia ser a relação entre ambos a totalidade da história. Ainda mais quando se torna verdadeiramente delicioso assistir à representação de um dos expoentes máximos da literacia confrontada com o mais puro exemplo de simplicidade aguerrida.
Seria no entanto redutor à beleza literal do enredo -o romance confere-lhe então essa dose de cabimento narrativo necessária de forma bastante simples: Mario encontra-se apaixonado pela mais bela mulher da pequena aldeia piscatória.
De tal forma que Massimo Troisi nos faz acreditar tanto na parca capacidade de utilização das palavras quanto no seu amor por Beatricce. E é nesse ponto que esta produção se torna num clássico na verdadeira acepção da palavra: não pela antiguidade, pela capacidade de marcar o seu género cinematográfico.
O argumento, a banda sonora, toda a mis-en-scène e as actuações avassaladoras remetem-nos ao ambiente leviano de uma Itália sonhadora, deixam-nos a viajar espontâneamente. Livres de toda a politiquice em que o mundo se embrenha.

Nua a realidade seria desprovida de emoções -simples, na sua aliteração do mar. Terrestre, mínima, transparente. Não a realidade dos que sonham, nem sequer dos que amam. Nua a realidade não seria a hipótese das palavras, não seria o esplendor da vida, não seria a própria vida -dedicada a todas as coisas belas.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Gladiator (2000)

O paraíso está onde menos se espera.



A morte sorri-nos a todos. Apenas lhe podemos retribuir o sorriso.
É neste âmago de consternação e realismo, que se apresenta Gladiador. Trágico, mantendo sempre uma expectativa de espectacularidade - a julgar pela cena de batalha no início -, mas ao mesmo tempo lírico e metafórico, tornando-se uma combinação perfeita daquilo que mais marcou o Império Romano: a beleza artística e o elevado nível de desenvolvimento do período clássico num contexto de violência e brutalidade.

Mas isto resume-se à História. Existe depois a história, o enredo, a narrativa. E neste aspecto nunca nos é facilitada a tarefa de abnegação e conformismo comum, tanto pela forma catalítica que vão sucedendo todas as contrariedades, como pela própria negação do destino pelo personagem principal. Esta é pois uma luta incessante do General Maximus (Russel Crowe) pelo desejo de paz, ao mesmo tempo que uma silenciosa vingança contra quem lhe estuprou mulher e filho. Essa privação do seu próprio destino impele-o numa longa viagem cujo objectivo surge no plano metafórico da narrativa enquanto Céu na Terra. O enredo assume-se assim categoricamente sombrio, como que vivendo na penumbra dos bosques da Germânia e posteriormente do Coliseu de Roma, enquanto gladiador. Assombrosa se revela a personagem de Commodus (Joaquin Phoenix), assassinando o próprio pai, desejando a própria irmã, ordenando o assassínio do General Maximus: é Commodus o responsável por tudo o que não se encontra entregue ao acaso. Mostrando contornos de insanidade e de uma soberba repulsivas confere uma enorme profundidade ao seu personagem arrebatando um desempenho inesquecível, talvez até mais conseguido do que o de Crowe.

Repleta de momentos épicos, é uma obra que tal como o seu personagem principal não se perde em glórias. Os planos muito trabalhados, de uma cinematografia de excelência, conferem-lhe um tom "clássico", ao mesmo tempo que as cenas de acção -não gratuita e demonstrando uma grande originalidade- catapultam-nos para o próprio Coliseu, dando a esta obra a dicotomia necessária para se mostrar uma obra actual, isto porque hoje como no tempo da narrativa a sociedade vê as lutas entre seres humanos como entretenimento, justa ou injustamente. Toda esta atmosfera de envolvência ímpar é acompanhada por uma banda sonora expressiva e marcada que por si só nos transporta ao tempo da acção.

Sombras e pó: assim se pode resumir o final da enorme viajem da vida; tal como a história de um Império; ou o objectivo de um ser humano, num simples gesto de graça, humildade e consternação -porque afinal o paraíso pode estar onde menos se espera.