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sábado, 27 de fevereiro de 2010

Control (2007)

Lights are flashing, cars are crashing.




Ian Curtis pôs termo à sua existência no ano de 1980, pouco tempo antes daquela que seria a sua primeira tournée pelos Estados Unidos da América. As frequentes crises epilépticas levaram-no indelevelmente a perder o controlo, que o próprio celebrizara numa das mais representativas músicas dos Joy Division. Control, do realizador e fotógrafo Anton Corbijn, é mais do que a biografia de um músico: trata-se da perspectiva supra-emocional de uma vida vivida num espaço de tempo exageradamente curto, levada ao expoente da loucura em nome do amor, perdida numa existência que apenas desejava ser como tantas outras. É na forma como Corbijn entende o valor da criação de cada música da banda de Manchester que o filme ganha a dimensão devida, superando as barreiras da biografia e alastrando até ao íntimo das letras de Curtis. Emanam experiência, mas sobretudo sombra, letras como She's Lost Control, Disorder ou Transmission - e que a rodagem a preto e branco acentua - criando um paralelismo bastante evidente com a vida do vocalista. Que nos arrasta vertiginosamente até ao seu trágico suicídio, desde a sua ascensão enquanto membro/vocalista de uma das bandas que revolucionou a cena Punk-Rock britânica, até à ao profundo sentido que levou à escrita da letra de Love Will Tear Us Apart. Sam Riley dá vida a Ian Curtis, dando a este biopic a autenticidade que por vezes parece falhar noutros do mesmo género.
Para os fãs da banda trata-se da efígie à sua glória e àquela que poderiam (certamente) ter alcançado: para os não fãs poderá existir alguma conexão forçada entre cenas, que no entanto o ritmo dos Joy Division tratará de fazer ecoar nas suas cabeças insistentemente - alertando para o milagre da vida. Uma vida demasiado intensa para quem aos vinte e três anos vivia na sombra do próprio presente, existindo da melhor forma que podia.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Funny Games (1997)

A importância do entretenimento.


A violência existe junto de nós todos os dias, coabita connosco, é um facto inegável. Que se encontre de alguma forma institucionalizada, que por vezes possa ser utilizada em nosso "benefício", que nos seja mostrada em demasia, que seja tolerada e se alegue que desde sempre nos é inerente, são pelo contrário, argumentos questionáveis.
E desde logo as vozes mais iradas levantarão as mais variadas questões acerca de quem permite que esta nos seja mostrada, como podem permitir que as gerações vindouras sejam constantemente expostas a violência, quem tolera semelhante situação?
Nós. E embora pareça redundante aparenta ser a resposta mais correcta. Somos nós, entenda-se aqueles que aplaudem a violência no cinema, quem permite que tal aconteça.
Porque a violência não se mostra; vai-se acumulando e enraizando.
Até que um dia dois jovens imaculadamente vestidos de branco surgem, e aquilo que parecia apenas mais um dia de férias, se torna o espelho de uma violência contida, acumulada. Porque é praticamente impossível deslindar sob a sua aparência aquilo que ocultam.
E ao contrário daquilo que esperávamos, a brutalidade que fora aplaudida em outros momentos, aqui não existe. E se existisse?
Apesar do louco e perigoso jogo das duas criaturas de branco (nas palavras do próprio realizador, Michael Haneke) que matam em tom de jogo infantil e talvez porque 'sim', a violência física propriamente dita é relegada para segundo plano, ou talvez mesmo renegada - e tudo porque é a sua ausência que nos pretende chamar a atenção. Porque se existisse para nós seria normal, mas assim sendo não o é. E porque não?É então, na perspectiva niilista de dois jovens que decidem jogar com vidas alheias (Paul e Peter, Arno Frisch e Frank Giering respectivamente) que Haneke se baseia, criando um labirinto de jogos psicológicos autenticamente fatais, para nos mostrar que afinal existem culpados.
De tal forma que por diversas vezes somos surpreendidos pelas perguntas de um dos jovens, argumentando que em prol do entretenimento continuarão a fazer sofrer o casal e o respectivo filho. Não é isso que queremos? E essa quebra de ficção atinge novos patamares - forma de interacção com o público que Haneke desconstruirá até ao limite. Porque a sua capacidade de produzir violência gratuita não é espantosa (nem necessitava de o ser), porque a sua capacidade de acção é outra: por isso premeia-nos com planos estáticos e intensos em cenas de longa duração, cuja beleza visual nos prende ao ecrã, torturando-nos no bom sentido da palavra (?). E são cenas como as que cria o realizador austríaco que nos trazem inclusive o melhor de cada actor, levando-os também ao limite, tornando mais credível a sua mensagem. São cenas com a pujança daquela em que o filho do casal é morto, que nos presenteiam com o que de melhor há no cinema e em actores como Susanne Lothar e Ulrich Muhe.


Para aqueles que esperam um filme violento, desenganem-se. Brincadeiras Perigosas, na sua versão original ou no remake do próprio director de 2007, é muito mais do que isso.
Para nos mostrar que apesar de haver rumores de violência, e todos sabem que existem, há quem não os compreenda ou sequer os finja compreender. Mas ela continua lá. Para que quando dois sujeitos decidam jogar a vida de um casal, saibamos qual a razão de ser.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

The Departed (2006)

Aquilo a que se pode chamar "um paradoxo".



Considerado por muitos um dos maiores realizadores da actualidade, quer pela sua peculiar visão do mundo que o rodeia quer pela verdadeira arte da realização, Martin Scorsese é um daqueles realizadores capazes de captar a realidade do seu ambiente na forma original. De nos fazer crer que o mundo que nos mostra não é um produto seu, mas que é o próprio Scorsese um resultado do meio onde cresceu.

I don't want to be a product of my environment. I want my environment to be a product of me. Frank Costello (Jack Nicholson) inicia um dos filmes mais marcantes de Scorsese com esta frase, em jeito de sentença póstuma, que irá juntar a tantas outras do carácter presunçoso da sua personagem. É de infiltrados que "The Departed" trata; de como alguém improvável assume um papel repleto de mentiras e traições. Colin Sullivan (Matt Damon) é talvez o expoente máximo desse mesmo papel, mesquinho e traiçoeiro, capaz de viver na mentira de forma a esconder a sua fraqueza. É também o símbolo da representação da fé de Scorsese na Igreja, o qual pretendia tornar-se sacerdote; é no entanto na personagem de Costello que reúne todo o antagonismo com o realizador - não o vimos a citar autores famosos, odeia a Igreja e não assiste ao que sucede à sua volta, cria-o. E o veterano Nicholson sabe bem como essa dicotomia deve funcionar, dando largas a todo o fetichismo que revelou noutras obras.
William Costigan (Leonardo DiCaprio) serve de contraponto à personagem de Matt Damon, e acrescenta realmente um ponto. Mostra-se como a personagem que viveu um passado terrível e no entanto mantém-se ímpio aos seus princípios, aquilo a que psicologicamente falando se chamaria de paradoxo (fala-se da influência do meio na maturação do ser humano?).
A montagem minuciosamente trabalhada confere-lhe o tom dinâmico de uma cidade como Boston, capaz de prender a atenção durante todo o filme. Reclama para si a forma como o enredo capricha e se desenvolve, através de tiques e manias scorsesianas, que no fim fazem sempre sentido.

Do seu ambiente Martin Scorsese absorveu o tom violento dos bairros nova-iorquinos; durante anos foi perdendo o tão ambicionado Óscar para outros (justa ou injustamente), e tudo aquilo que o poderia levar a fazer um filme politicamente correcto foi renegado. E ainda bem que assim foi. Porque tudo o que Scorsese devolveu ao seu ambiente foi algo muito maior. Com ou sem prémios, porque tanto a vida como a arte, por vezes são injustas.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

De battre mon coeur s'est arrêté (2005)

Porque a realidade é uma constante da vida.



Um cirúrgico corte com a utopia.
Foi esta a forma que Jacques Audiard encontrou para nos mostrar o lado mais cru do novo cinema francês: sem pudor nem rodeios, face a face com a intolerável consciência do ser, decantando da quimera da vida o seu sustento etéreo: o sonho.

O corte com a realidade não é completamente acessível - e muito menos acessório - assumindo, mais do que a essência do enredo, uma nouvelle vague no cinema de autor produzido em França. Ressuscitando o legado de Truffaut e Godard, desprende-se lentamente do rótulo lírico que lhe fora atribuído, rebuscando tanto a frieza e a amoralidade das personagens como a dureza dos planos e dos diálogos; e isto sem nunca cair no domínio do facilitismo.
Mas adiantando: "De tanto bater o meu coração parou" não é uma obra linear em termos de emoções. Thomas Seyr (um Romain Duris deveras autêntico) representa para Audiard uma espécie de paradigma emocional, contrabalançando a violência que exterioriza no trabalho com a perseverança do desejo de se tornar pianista; e é na relação com o seu próprio pai (Niels Arestrup) que estas características se denotam mais vincadas - ainda que não de forma implícita, longe do piano que aqui representa pouco mais que um adereço -. Essa verdadeira montanha russa de emoções confere-lhe então uma beleza gélida, um rigor mortis num corpo vivo, um triunfo de habilidade. E no centro desse périplo existe então o contrapunctus sob a perspectiva de que a vida pode ser também ela linear, o que em boa verdade - na verdade dos que sonham - é impossível.
Será também pela relação com o pai, e porque eminentemente desejamos que nos seja perpetuada essa relação, que admitirá o seu derradeiro acto de redenção, delimitando o espaço que existe entre o sonho e a realidade pelas suas próprias mãos. Continuará perto do sonho do piano mesmo quando o abandona, abdicando ao sol, tornando-se rei de si próprio. Mas não do seu interior.

É a perspectiva derrotista da vida que se impõe nesta obra. Pela forma como o sonho é renegado e inoculado do ser - o derradeiro corte com a utopia -, subsistindo um objecto cadavérico que vive movido a éter, a nada, a coisa alguma. Como pode um coração continuar a bater exteriorizado do seu combustível? Como pode alguém mover-se sem sonhar? A forma inteligível como se apresenta a hipótese do corte com o grande sonho é uma magnífica proeza de Audiard, tão dura quanto bela e, quem sabe, possível. Porque apesar de tudo a realidade sem o sonho permanece nua, sem capacidade de se mover.
Sem o dom de viver. A vida não é linear.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Lawrence of Arabia (1962)

De um outro tempo.


O deserto. Depositário de elementar dimensão, obstinadamente e acima de tudo, deserto.
Símbolo da derradeira negação do tempo e, de certa forma, uma metáfora do próprio destino: incerto, inflexível, imprevisível.
É essa a sua antítese.

A beleza enquanto experiência de um processo cognitivo, sensorial ou supra-sensorial da percepção de determinados elementos, assume por vezes a responsabilidade da demência humana - a impossibilidade de abarcar ou compreender algo de proporções gigantescas revela assim a face desproporcional do mundo. É então essa a contradição do deserto, impossível de compreender na totalidade, rogando pela sua contínua solidão.
T. E. Lawrence é então o expoente máximo da obsessão por tal beleza inebriante, pela experiência metafísica do Homem no mundo - tão letal quanto o próprio deserto. Da mesma forma Lawrence permanece isolado enquanto semblante da hipercomplexidade, remetido para um mundo muito próprio - por vezes a loucura depende da incompreensão de quem rodeia.

Peter O'Toole revisita a personagem histórica e encarna-a de forma quase perfeita dando-nos a conhecer a luta que travou aquele que seria conhecido como "Lawrence da Arábia" - não apenas pela independência da Arábia, mas também a sua luta interior pelo desejo anti-heróico que carregava. E é através desta luta que se depreende um ser incompreendido, extasiado e irado pelo seu amor ao deserto, numa relação de verdadeiro amor-ódio que nos é transmitida de forma exemplar pela interpretação magistral de O'Toole - mais do que profundos olhos azuis, este senhor da sétima arte faz com que acreditemos na sua (in)sanidade - "There is only the desert for you", ser-lhe-à dito como uma sentença nos momentos finais.
De toda essa profusão de sentimentos o realizador David Lean explora ainda a faceta mais obscura da alma de um homem - pelo gosto em ceifar vidas, reiterando em parte a negra sombra que atormentava Lawrence - num tom mais experimentalista e de maior complexidade psicológica.

Nothing is written. Tal como um deserto, o destino é maleável - pode e deve ser escrito.
Lean provavelmente não terá entregue o seu projecto a mãos deterministas, revelando uma capacidade inaudita para contar uma bela história sem redundâncias ou falsas ilusões - veja-se a cena da tomada de Aqaba, uma das mais impressionantes de toda a história do cinema - tacteando todo o domínio psicológico cuidadosamente. De referenciar ainda os planos magníficos, de extremo cuidado e dotados de enorme inteligência, obra de puro conhecimento.

Para nos recordar que o nosso coração pertence a algum lugar; que cada lugar nos cativa de forma diferente e que dele somos cativos, sem capacidade para argumentação - afinal o deserto deseja permanecer deserto.
A nossa casa será onde o nosso coração se encontra, tal como nos velhos filmes. E que bom é apreciar obras de um outro tempo.