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quinta-feira, 25 de março de 2010

Code Inconnu (2000)

Uma bandeira não é um país.
Uma avenida. A coluna vertebral de uma cidade é por norma o centro nevrálgico da sua actividade, local onde todos os dias milhares de pessoas se cruzam - manobra do acaso, de um conjunto de razões que as levaram a esse momento, whatever - garantindo o ideal de uma "aldeia global" intacto. E essa é a extrapolação de que vivemos numa gigantesca Torre de Babel, é um facto, em que a mistura de culturas parece, não inevitável, mas necessária. Compreender as diferenças e encontrar a igualdade é o mote.
Também neste Récit incomplet de divers voyages, subtítulo de "Código Desconhecido", do inevitável Michael Haneke, encontrar a igualdade na diferença parece ser a constatação evidente de que o acaso não é para aqui chamado. Não, não quando as histórias dos diferentes protagonistas se assumem tão diferentes - mas no fundo tão relacionadas entre si, e isso não é obra da providência. Da mesma forma que os indivíduos que se cruzam numa avenida não se cruzam por acaso. Não. Na sua obra Haneke também não deixa nada ao acaso (por vezes não vemos todas as pontas, mas isso, c'est la vie) e neste caso é o resultado de uma série de histórias e viagens incompletas que cria a sua Torre de Babel, meticulosamente sua, repleta dessas pequenas ligações que poderiam até nem existir e que, repita-se, não são obra de uma qualquer casualidade. Tudo se inicia com um papel amachucado que é atirado para o regaço de uma pedinte, e todas as implicações que essa acção não deliberada terá são no mínimo casualidades. Porquê o antagonismo? Porque simplesmente o papel fora atirado por um jovem, que viria a ser interpelado por um outro jovem (Amadou) de origem africana, que o considerou enquanto um acto de desrespeito. Mediante a intervenção da polícia vimos a descobrir que afinal a pedinte tem um nome, Maria, e que é uma imigrante ilegal a viver em França. E como se não bastasse, Maria é repatriada, Amadou acusado de racismo e o jovem, irmão de um fotógrafo a trabalhar no Kosovo, ignorado pelo pai. É nessa parte da interpretação que a avenida entra, isto é, a coluna vertebral: Anne Laurent, uma actriz interpretada por Juliette Binoche. E como coluna vertebral que é confere todo o sentido à história, conectando os personagens e alagando de vida esta obra, não sendo nem culpada nem injuriada.


O drama da emigração, brilhantemente caracterizado em Maria, é o de tantos outros que partem à procura de algo melhor, à procura de uma vida longe de suas casas e de quem mais amam. O seu código não é desconhecido, tal como não é desconhecido o código utilizado por crianças mudas para comunicar: tudo depende da vontade de quem quer ou não compreendê-lo. Todas as questões morais e ideológicas são colocadas a frio, o que é um hábito em Haneke, não se resumindo às questões de emigração e dos emigrantes - vai ao que de mais profundo existe na alma humana, revolve passado e presente, para nos dar a história do jovem atirador de papéis amachucados. Porque, regra geral, a casa não costuma ser onde está a cabeça mas sim o coração. E esse jovem prefere a cidade ao campo, contrariando o pai. O que o leva a Paris, onde através da namorada do seu irmão percorre a cidade, amachuca um papel e... Aí se percebe a importância de Anne e da sua história mostrada em tom descuidado: ela é a base, a sua história é irrelevante e no entanto faz sentido. Obra do acaso? Não, de um dos grandes mestres do cinema actual. Que depois de construir a sua Babel lhe dá um desfecho muito seu, ao som de - sim, acto único, Haneke presenteia-nos com música na parte final da obra - uma fanfarra pouco comum que nos deixará a cogitar.

É inegavelmente uma obra maior, mais directamente alarmista e menos provocadora, sem nunca cair no melodrama americanizado. Um resumo de histórias que não são as de um país mas sim das pessoas que nele vivem, independentemente da bandeira que carregam. Multiculturalidade numa sociedade pouco aberta ao que é diferente. Acaso?

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