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terça-feira, 2 de março de 2010

La Pianiste (2001)

Cinema em estado cru.


Natural. Se há adjectivo que não faz pleno sentido na análise a um filme este é um dos exemplos mais proeminentes. Para mais quando há realizadores que não pretendem ser naturais nas suas obras, bem pelo contrário - abundam as tentativas experimentalistas, os escapismos surrealistas e as fantasias deliberadas - que irradiam as fronteiras da criatividade. E outros há, que sem sair do panorama meramente realista, expandem a arte até pontos controversos, inovadores ou muito distantes de tudo o que já foi feito. Eis Michael Haneke. Ele que se evidencia precisamente por ser um contestatário do cinema, e, acima de tudo, um realizador controverso. Entenda-se que a expressão "controverso" se refere à sua obra mais sublime, longe de quaisquer malabarismos hollywodianos, que reclama para si "apenas" cinema em estado puro. "A Pianista" é um desses exemplos sublimes: sobretudo pela sua beleza violenta(!) e incomodativa até, mas ainda assim esplêndida - que nos aterroriza sem sair do círculo social, psicológica na sua extensão e que não precisa de chegar a ser física.
Natural não é então o adjectivo adequado na crítica de um filme. Para mais se o cinema se mostrar pura ficção (ainda que possa basear-se em factos verídicos), representação de uma realidade exagerada ou por vezes dilacerada. Longe da realidade que todos conhecemos. Não, o cinema não é natural.
Mas regressando à obra propriamente dita: Erika Kohut (Isabelle Huppert numa interpretação que lhe valeu o galardão de Melhor Interpretação Feminina em Cannes) é uma professora de piano que aos trinta e muitos anos vive com a mãe, autoritária e protectora. Que recorre a filmes pornográficos para sentir prazer e que, isolada, reflecte nos seus alunos a sua busca pela perfeição interior. E se este ambiente só por si surge bastante sórdido, tudo piora quando um jovem,Walter Klemmer (Benoit Magimel, também ele vencedor da Melhor Interpretação Masculina no Festival de Cannes), se apaixona pela senhora da vida obsoleta, a qual lhe revela os seus desejos mais obscuros e perversos de sadomasoquismo. À imagem de uma sociedade que por mais que se diga evoluída, mantém uma mentalidade que é posta à prova todos os dias, pela modernidade. À imagem de uma sociedade que embora modernizada permite que uma mulher seja sexualmente reprimida e se veja humilhada por isso. E por este plano, a crueza das imagens (dos encontros entre ambos) assume um confronto de estigmas e mentalidades, quase como uma revelação de que aquela não é uma realidade exagerada. De que aquela realidade, ainda que protegidos dela, é natural.

No pináculo da sua loucura Robert Schumann terá, algum tempo após o incidente que o levou a perder um dos dedos da mão, atingindo um momento de pura sapiência demente. Sob a aura da sua genialidade e encontrando o crepúsculo da loucura, concebeu intimamente qual o seu estado - infelizmente demasiado louco a partir desse momento para que o pudesse revelar, viria a perecer. Erika revela-nos também a determinada altura que Schumann e Schubert são os seus compositores favoritos, o que automaticamente não parece fazer muito sentido, servindo de uma informação acessória. No entanto, quando inicia juntamente com Walter uma perigosa viagem até aos limites da sanidade, e lhe entrega uma carta reveladora dos seus desejos mais íntimos toda esta informação volta reveladoramente a fazer sentido. E mérito de Haneke por nos mostrar sem pudor (deveria ter?) essa jornada através de uma forma muito sua, com cenas de longa duração e de um único shot, incomodando e provocando simultâneamente. O que parece retirar do actores toda a sua capacidade visceral (e que, parafraseando, nos revolve as vísceras) para um desempenho mais realista. Porque é de realidade que se trata, ainda que de crua, mas quase natural.
Baseado no livro de Elfriede Jelinek, Die Klavierspielerin, esta é uma das obras mais marcantes de Michael Haneke, pela forma singular de adaptar o argumento e lhe conferir o poder de uma verdade que o espectador não gosta de ver, de apontar um jogo claustrofóbico em que somos obrigados a compreender mais os personagens do que a conhece-los.

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